SINTRA INÉDITA

Nova imagem de Sintra com 500 anos.
Autoria: Degraconis | Pesquisa: Sintra Subterrânea
Cap.1- Introdução Cap.2 - Sobre o fólio onde se representa Sintra  Cap.3 - Representação de Sintra.
26.11.2013


 Diversos são os termos que podíamos ter usado no título mas a escolha recaiu no termo “inédita”, o que até pode causar algum espanto nos leitores mais eruditos nestes temas. Em boa verdade não é, mas para a maioria dos nossos leitores, tal como para nós foi e é, a imagem que iremos apresentar é de facto inédita!

                                                                                        "é impossível dar uma ideia da magnificência desta obra de arte…que é preciso ser bem avaliada”
Frederico Francisco de La Figaniére


1.      Introdução.

A mais antiga representação conhecida de Sintra - vista de três perspectivas diferentes - foi desenhada por Duarte D’Armas, e reporta-se ao início do séc. XVI, voltando somente a surgir imagens no séc. XVIII, apresentando-se no entanto o início do séc. XIX mais profícuo na produção destas, período em que volta a surgir manifestadamente um interesse por Sintra pelos viajantes estrangeiros e pela aristocracia portuguesa, o qual encontra raízes já no último quartel do século anterior com chegada de William Beckford e Gerard Devisme. Têm sido estas três representações divulgadas vezes sem conta em qualquer livro que pretenda abordar a história de Sintra, ou que se debruce sobre a sua arquitectura quinhentista, quer civil, quer militar.

Fig. 1 – Representações de Sintra na obra “Livro das Fortalezas” de Duarte D’Armas.

Vimos por meio deste artigo, divulgar uma nova imagem que doravante deverá merecer os mesmos créditos que as de Duarte D’Armas, até porque lhe é coeva, a qual por nunca a termos visto publicada no âmbito local – nem em sites, nem em obras – presumimos ter escapado a todos quantos se dedicam à sua história, senão mesmo certeza disso.

Antes porém, umas palavras sobre as pesquisas que vínhamos desenvolvendo e no decorrer da quais se dá a descoberta da dita imagem quinhentista, adiante-se já, colorida e representando os três mais importantes monumentos de Sintra, na época e ainda hoje.

Em 1838 é publicada anonimamente uma obra intitulada “Cintra Pinturesca ou memoria descriptiva das villas de Cintra e Collares e seus arredores”, uma das primeiras monografias regionais sobre Sintra. Todavia, é positivo de que a obra é da autoria de João António de Lemos Pereira de Lacerda, 2º Visconde e 2º Alcaide-Mor de Juromenha, mais conhecido apenas como Visconde de Juromenha. Apesar dos graves erros em que por vezes incorre, é indiscutível o seu interesse para qualquer investigação histórica sobre Sintra. Um verdadeiro clássico da literatura sintrense, a que nenhuma biblioteca, que se preze, é alheia.

Em parte, resulta esta obra, da simples compilação de informação que o autor encontrou na Torre no Tombo, e ao qual há que dar o merecido mérito, mas que não soube ou não quis aproveitar para novos desenvolvimentos, como também, de descarados plágios a outros autores anteriores, que por raras serem as suas obras, nem chegam a ser referidos ou citados, como sejam, Francisco Almeida Jordão e a sua obra “Relação do Castelo e serra de Sintra…” do ano de 1748, e o Padre Manuel Pereira de Sottomayor e o seu manuscrito “Cathalogo dos Priores da Igreja de S. Miguel de Cintra em que se conthem alguas antiguidades da mesma villa, consagrado ao archanjo S. Miguel patrono da dicha igreja”, escrito em 1675 e hoje conservado na Biblioteca Nacional de Lisboa, entre outros.

Fig. 2 – Obra “Cintra Pinturesca” de Visconde de Juromenha e 
“Relação do Castelo e Serra de Cintra” de Francisco Almeida Jordão.

Infelizmente, careceu a obra, de suficientes notas para um perfeito entendimento de algumas das suas passagens, assim como, teria sido mais feliz se a edição tivesse contido algumas ilustrações, nomeadamente de locais e monumentos que vieram a desaparecer ou a ser adulterados substancialmente posteriormente. Ficam, porém, as memórias escritas.

Talvez tenha sido com esse mesmo sentimento que António A.R. da Cunha ficou quando conheceu a obra, visto ter sido o promotor de uma segunda edição, no ano de 1905, introduzindo-lhe consideráveis apontamentos, notas de rodapé e apêndices, insertando-a também profusamente de imagens, que nem sempre se relacionam com o tema a ser tratado, mas que constitui hoje um precioso acervo de imagens antigas de Sintra.

Posto isto, há que dizer, antes de mais, que inicialmente a nossa ideia consistia apenas em fazer mais um Sintra Explorer com transmissão em directo tendo como cenário o Castelo dos Mouros, mas logo fomos imbuídos do mesmo espírito de António Cunha, tendo decidido que para além disso, iriamos encetar por semelhante projecto, ou seja, fazer uma segunda edição de uma outra obra importante, neste caso, do livro “Investigação ao Castelo situado na Serra de Sintra” de Abade Castro e Sousa, do ano de 1843, o qual igualmente padece dos mesmos plágios que a obra de Visconde de Juromenha. Chegámos mesmo ao ponto de colocar em dúvida se o Abade terá de facto realizado a investigação a que se propôs e descreve, tal é a cópia um de outro em certas passagens, porém estamos em crer que se tratou apenas de uma economia de palavras, aproveitando-se das de Jordão de Almeida – neste caso trata-se de plágio sobre este - para algo que talvez acreditasse não fazer melhor. O facto de o ter feito ajudou-nos a entender e a verificar algumas notícias que oportunamente divulgaremos. Aliás, parece que as palavras de Jordão de Almeida tem servido a muitos, nomeadamente ao padre da freguesia de São Pedro de Penaferrim quando este, assumidamente, informa no que respeita à descrição do Castelo a propósito das memórias paróquias de 1758 para indagar dos estragos ocorridos em 1755, irá dar lugar à descrição que o Prior Jordão de Almeida já havia feito, o que nos deixou indignados até porque a obra é anterior ao terramoto. Descobrimos isto quando procurávamos apurar os danos provocados ao castelo e ao convento da Pena e voltámos a esbarrar com a repetição de palavras que já conhecíamos.

Fig. 3 – Obra “Investigação ao Castelo…” e imagens antigas recolhidas pelo Fos Gráfis – Arquivo de Imagens de Sintra, para ilustração.

Encetada tal empresa, que passa não só pela adição de notas de rodapé, apontamentos e alguns apêndices, iniciámos com uma recolha de imagens, antigas e actuais, para ilustrar o percurso que iremos levar a cabo na companhia do Abade no decorrer de mais Sintra Explorer, lançando posteriormente essa segunda edição.
No âmbito desta recolha de informações, inesperadamente, e já no desenvolvimento de um artigo autónomo, na sequência de uma outra descoberta excepcional que fizemos no livro do Abade e que merece um artigo nosso – a publicar ainda este ano – viemos a descobrir, quase acidentalmente, algo digno de registo e divulgação imediata: uma imagem colorida de Sintra do ano de 1530-1534, onde é possível reconhecer perfeitamente o Convento da Pena, o Palácio da Vila e o Castelo dos Mouros, precisamente do qual procurávamos informação e imagens para efeitos de ilustração.

Escasseia-nos o tempo para preparar um texto desenvolvido sobre a imagem que iremos então dar a conhecer, não obstante saber o quanto merecia, nem que fosse uma análise critica da fidedignidade da representação, no entanto iremos deixar para outros mais laboriosos nestas matérias, e mais competentes em semelhante apreciação e trabalho critico.

Posteriormente à sua descoberta, directamente na  British Library, - dai a termos conseguido em alta definição - viemos a encontrá-la, em diversas obra dedicada a Lisboa, não valorizando, em virtude disso, a paisagem sintrense, nem apresentando a imagem com qualidade suficiente para perceber o seu altíssimo valor geográfico, nem mesmo permitindo dar pela existência da representação desses três monumentos já apontados, os quais se apresentam com um detalhe notável, até porque se trata de uma iluminura de um suposto livro, - incompleto - nomeadamente o Palácio da Vila. Portanto é de ressalvar de que não se trata propriamente da descoberta de uma obra desconhecida, ou até eventualmente pouco divulgada. Muitos já se preocuparam com a sua arte e o seu estudo mas em círculos muito restritos, como seja o da Genealogia, ou Olisiponense, não valorizando as representações fora desses temas. Também não deixa de ser verdade que nem todos os seus estudiosos tiveram acesso a todos os fólios hoje conhecidos, nem a possibilidade de os conhecer com a nitidez com que hoje se encontra disponível. Nem mesmo a edição da década de oitenta da editora Inapa, que reproduz os 13 fólios ao natural, permite o vislumbre das imagens como iremos dar a conhecer.

Diversos são nomes que já foram atribuídos a esta obra: “Genealogia dos Reis”. “Genealogia iluminada do Infante D. Fernando”, ”Árvore Genealógica dos Reis de Portugal”, “Genealogia por António de Holanda”, Iluminuras de Simão de Bening”, etc, optando nós por “Genealogia dos Reis” para efeitos deste artigo, até porque é o nome que surge num documento apresentado por António de Holanda na tentativa de receber o pagamento pela obra que ficou incompleta, e não paga, quando da morte do Infante em 1534.

Fig. 4 – Alguns dos fólios da obra designada como “A Genealogia dos Reis”.

Consiste este, num manuscrito, adquirido por partes pelo Museu Britânico, no ano de 1842, após ter sido adquirido por Newton Scott em Lisboa, e em 1868 a um tal de Baron Hortega de Madrid, composto por 13 fólios finamente iluminadas por uma oficina flamenga com o propósito inacabado de mostrar a união das Casas Reais portuguesa e espanhola, na pessoa do Infante Dom Fernando antepassado de D. Manuel e igualmente descendente do Conde Dom Henrique e de seu pai o Rei Santo Estevão da Hungria.

Escusamo-nos a detalhar toda a história que envolve as aquisições atrás referidas, a qual constitui uma verdadeira saga – interessantíssima, diga-se – envolvendo nome de pessoas que não existiram, personagens misteriosas e até, eventualmente, o seu roubo da biblioteca de Madrid. É deveras estranho que tendo parte da obra sido colocada à venda em Lisboa, e tão notável ela é, facilmente percepcionável o seu valor para os nossos museus, não houvesse quem a comprasse. Questão aliás levantada por António de Aguiar no seu estudo histórico e crítico à obra: Não teria D. Fernando II as quarentas libras, valor indicado de venda, para adquirir os fólios reservando-os à coroa portuguesa? Raczynski, que por esta época já afincamente se dedicava a estudos da arte portuguêsa, e que até tinha sido alertado, precisamente pelo Visconde de Juromenha da existência de uma referência quinhentista à obra, não teria intervido evitando a sua saída de Portugal? Tudo isto leva à ideia de que o manuscrito foi vendido – se assim foi de facto – longe dos olhares do público ou à boca fechada.

Damião de Gois, conhecido humanista português, diz-nos que foi encomendado pelo Infante D. Fernando, filho de D. Manuel I, o qual pretendia que se desenhasse uma árvore genealógica desde o tempo de Noé até ao reinado de seu pai, tendo procurado para essa tarefa Simon de Bruges, considerado o melhor mestre na arte da iluminura no seu tempo. Ao que parece, este trabalho resulta da colaboração, à distância, entre António de Holanda, pai de Francisco de Holanda – autor do desenho do antigo templo dedicado ao Sol, à Lua e ao Oceano no lugar do Alto da Vigia, em Colares – e Simon Bening que residia na Flandres.


Fig. 5 – Esq.: Página da Crónica de D. Manuel onde Damião de Góis refere a obra a encomendar. Dir.: Auto-retrato Simon Bening.

Conforme anotações do seu filho, insertas numa obra de Vasari, – hoje na Biblioteca Nacional – António de Holanda terá fornecido os desenhos, possivelmente para Bening os colorir. De acordo com informação da ficha do manuscrito, – conforme podem verificar no site - dos 13 fólios existentes, Bening terá sido responsável por cinco e os outros sete terão sido completados por António de Holanda, entre os quais se encontra, quer o que retrata Sintra (f. 7r, site), quer um outro, de interesse no âmbito da representação da paisagem portuguesa, que dá a conhecer Santarém (f.8, site). Um outro, o último, permite ter noção de quanto engenhoso era António de Holanda na arte da iluminura e como pintor miniaturista, a quem segundo seu filho, – na obra “Da Pintura Antiga” - “podemos dar a palma e juízo, por ser o primeiro que fez e achou em Portugal o fazer  suave de preto e branco muito melhor que em outra parte do mundo». De salientar que esta atribuição de fólios a um e a outro, constante da ficha do manuscrito, não é pacífica nem consensual, mas não existe aqui lugar para mais desenvolvimentos.

Fig. 6 – Nota de Francisco de Holanda numa obra de Vasari onde refere que os desenhos de seu pai foram os escolhidos para ilustrar a obra encomendada pelo Infante D. Fernando.

Não queremos estar a saturar o leitor com detalhes que possam ser irrelevantes para o que pretendemos dar a conhecer – a representação de Sintra – mas pelo facto da informação constante e disponível no site inglês estar carenciada de detalhes que viemos a conhecer nesta última semana de estudo sobre a obra, obriga-nos, de forma a não desfraldar as expectativas dos leitores que manifestem o mesmo interesse de que de fomos assolados após a sua descoberta, a acrescentar esta panóplia de informações, que por mais que queiramos ficará sempre aquém. Conhecer a obra é valorizar a sua importância, tanto que viemos a saber que “esta obra-prima da arte da iluminação… é considerada por todos como superior a tudo quanto possue n’este género o Museu Britânico…”, segundo palavras de Frederico Francisco de La Figaniére, homem que após uma secular ocultação da obra, deu notícias da sua existência em 1853 no “Catalogo dos Manuscriptos Portugueses existentes no Museu Britanico”.

Fig. 7 - Frederico Francisco de La Figaniére.

Sabe-se que António de Holanda executou os Livros de Horas de D. Manuel, actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga, e de D. Leonor, agora na Colec­ção Pierpont Morgan, de Nova Iorque, e terá colaborado também na iluminura da “Leitura Nova”, sendo-lhe atribuído as iluminuras da Crónica de DAfonso Henriques, de Duarte Galvão, onde se insere a mais antiga representação conhecida de Lisboa.

Fig. 8 – Iluminuras do Livro de Horas de D. Manuel e da Crónica de D. Afonso Henriques.

Ainda antes de terminar este capítulo, e conhecido o interesse de muitos dos nossos leitores por temas do designado hermetismo ocidental, confirmamos – a dúvida deve ter já surgido – que Frederico, de nome completo, Stuart de Figanière e Morão, é o autor da obra “Estudos Esotéricos: Submundo, Mundo, Supramundo”, editada em 1889 - uma obra de teor teosófico - que antecede a publicação da obra monumental de Helena Petrovna Blavatsky, “A Doutrina Secreta”.

2. Sobre o fólio onde se representa Sintra.

O fólio onde surge Sintra pertence ao designado Tronco de Portugal, o qual devia ser constituído por quatro tábuas, – a obra encontra-se à data ainda incompleta – e cada tábua é formada por dois fólios, existindo apenas os dois primeiros fólios e um terceiro deste tronco. Sintra surge logo no primeiro fólio.

Fig. 9 – Fólio da “Genealogia dos Reis” onde surge Sintra do lado esquerdo.

As representações que nos interessam, surgem na bordadura lateral esquerda, as quais, em virtude do pouco espaço disponível para o miniaturista realizar o seu trabalho, resultam numa deturpação da perspectiva, não deixando por causa disso, de representar o mais fiel possível cada monumento em si próprio.

Presume-se que a batalha que se vê no topo da bordadura seja a de Ourique. Pelo facto de se verificar uma formação de peões em quadrado, a acompanhar a investida dos cavaleiros e dos besteiros, enquanto no flanco direito os restantes cavaleiros procedem ao envolvimento dos atacantes, reforça a ideia de tratar-se da Batalha de Ourique, dado ser uma táctica seguida pelos portugueses na batalha de Aljubarrota dois séculos após. Foi precisamente antes da batalha de Ourique que se deu a aparição de Jesus Cristo a D. Afonso Henriques, tendo dado origem ao conhecido Juramento de Ourique. Pois bem, é este episódio retratado na cena segunda da bordadura, onde se verifica a presença de Cristo envolvido numa nuvem como se de um Serafim se tratasse, a comunicar com o nosso rei, a fazer lembrar um pouco as representações do episódio de São Francisco aquando da estigmatização, tão em voga na pintura quinhentista.

Fig. 10 – Cena 1 e 2 da bordadura onde parece estar representada a batalha de Ourique e a aparição a D. Afonso Henriques.

A bordadura inferior é preenchida por uma vista de Lisboa na época do Infante D.Fernando, onde é possível avistar com bastante rigor e detalhe diversos monumentos, alguns dos quais recentemente inaugurados, como sejam, a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos. A propósito de Belém temos que chamar atenção para a inclusão da capela ou igreja do Restelo que se situava dentro da cerca dos Jerónimos – também nitidamente representada – e que nunca havíamos visto patenteada em data tão recuada.

Fig. 10 – Representação do Mosteiro dos Jerónimos, da Torre de Belém e da Capela do Restelo.

Apesar de ser uma representação quinhentista, verifica-se presença de um episódio que a nosso ver só pode ser o da reconquista em 1147 – houve dois assédios na história da cidade – e a presença de D. Afonso Henriques no fólio parece-o confirmar com alguma certeza. A representação de Beja e Évora no topo da bordadura do lado direito do fólio seguinte – conforme Ernesto Soares o faz no “Dicionário de Iconografia”, vol. IV – e tendo-se verificado também estas povoações terem sido conquistadas pelo rei referido, é mais um argumento a favor, assim como Santarém que em toda a sua plenitude se insere nesse mesmo fólio seguinte.

Fig. 11 - Santarém.

É de salientar ser esta imagem a segunda mais antiga que se conhece das panorâmicas de Lisboa – a primeira é a que se encontra na Crónica de Duarte Galvão já referida, e a fazer fé na atribuição de Reynaldo dos Santos, com justiça, também da lavra de António de Holanda – e não escapou aos olissipógrafos, apesar de nem todos saberem de que obra fazia parte, tendo mesmo inspirado Almada Negreiros na execução do painel que decora a reitoria da Universidade de Lisboa. Curiosamente também será, então, a segunda mais antiga representação de Sintra e a primeira colorida.

Fig. 12 - Lisboa.

Apesar de pouco visível, até porque se encontra ocultado em parte pela extremidade de uma vela de uma embarcação, verifica-se a presença do antiquíssimo Chafariz D’El Rei, do qual tivemos a sorte há uns anos de ter encontrado uma imagem num artigo de Vitor Serrão numa obra que raramente vemos em circulação intitulada “Estudos de História da Arte, Novos Contributos”, o qual por sua vez a tinha encontrado num pintura que se encontra ou encontrava em Madrid, permitindo a partir do rigor com que o artista intenta nesta representação, aquilatar indubitávelmente pela fidignidade das representações em geral desta iluminura. Não sabemos se já tinha sido detectada a sua representação nesta obra, até porque é quase imperceptível e não se equipara à representação que se verifica na panorâmica de Lisboa da biblioteca da Universidade de Leyde – também da primeira metade do séc. XVI – e na vista em perspectiva inserida na obra “Civitates Orbis Terrarum” de 1593, mas não deixa de ser de sublinhar, e quem sabe, tratar-se de mais um contributo para a bio-gravura do Chafariz que “tem uma construção admirável, com colunas e arcarias de mármore, e lança tal abundância de água, por seis torneiras, que ela só bastaria para dar de beber ao mundo todo” segundo Damião de Gois e transcrito por Vitor Serrão no artigo referido, aduzindo ainda que essa fonte “ … iguala ou supera todas as fontes que me lembro ter visto”. Também a de Sintra, Damião de Góis as conheceu, afirmando serem das mais frescas da Europa.

Aproveitamos então o momento para publicar a imagem referida, até porque outro poderia vir a não surgir no âmbito dos nossos trabalhos que se querem sobre Sintra especificamente.
Fig. 13 – Representação do Chafariz D’El Rei na “Genealogia dos Reis” (esq.) e pintura onde a mesma surge posteriormente.

Ainda sobre Lisboa queremos aludir para a representação do Paço, que inicialmente pareceu-nos trata-se da igreja circular de Santo Amaro, perto do Calvário em Alcântara. Nuno Rubim na sua obra “A Defesa Costeira dos Estuários do Tejo e do Sado. Desde D. João II até 1640”, onde pela primeira vez verificámos o destaque da representação de toda a linha de costa até Cascais, onde se inclui Sintra – e que deixou estupefacto o autor destas linhas, até porque detêm o livro na sua biblioteca particular e nunca se havia apercebido da representação – também a identifica como sendo a de Santos, entre outros. Todavia, e pela estranheza, até porque nos parece em nada se adequar à configuração conhecida da igreja onde repousam supostamente os restos mortais dos três mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, - estes foram alvo de estudo há poucos anos – aprofundámos o assunto e acabámos por verificar não termos sido os únicos a colocar em dúvida a identificação. Certo é que a igreja de Santo Amaro só começou a ser edificada sensivelmente após a data da produção desta obra genealógica, pelo que será inverosímil ser uma representação sua. Fica o mistério.

Fig. 14 – Representação identificada como sendo a Igreja de Santos-o-Velho

Para terminar, no que diz respeito a Lisboa, propriamente dita, chamamos atenção para a representação do que nos parece ser a antiga igreja de São Vicente de Fora, local onde estiveram sitiados os cruzados que ajudaram à conquista de Lisboa, sendo no entanto pouco visível pelo que pode passar despercebida a olhos menos atentos.
Fig. 15 – Detalhe onde se verifica a Sé de Lisboa, o Paço de São Martinho e a São Vicente de Fora.

Resta-nos referir que em português, no ano de 1962, foi editado um estudo de António Aguiar sobre a obra em questão designado por A Genealogia iluminada do Infante Dom Fernando por António de Holanda e Simão Bening. Estudo histórico e crítico..., e que encontrámos o fólio publicado a preto e branco na obra “Lisboa Quinhentista” de 1983 e, no “O Paço da Ribeira” de Nuno Senos, todos eles não se referindo às representações de Sintra nem as publicando com qualidade suficiente para as detectar.

3. A representação de Sintra.

Como já havíamos referido, é possível verificar a representação de Sintra no primeiro fólio do Tronco de Portugal, surgindo na tarja lateral esquerda, precisamente abaixo da cena do episódio de Ourique.

Fig. 16 – Representação de Sintra no fólio da obra em questão.

Dos três monumentos que marcam presença na iluminura no que respeita à zona de Sintra, o Palácio da Vila é o que se apresenta com maior detalhe e rigor, sendo possível dar conta de uma fonte junto aos arcos e à escadaria, – à semelhança do que ainda hoje existe – detalhe esse que não é possível descortinar nas representações do “Livro das Fortalezas” de Duarte D’ Armas. Curiosamente, parece que esta representação, ao excluir os edifícios que ficavam à frente do palácio, antecipa a ideia que se vem a concretizar já no século XX de os demolir de forma a permitir uma maior visibilidade da frontaria do palácio. Não pretendeu o artista representar a povoação, concentrando-se apenas na representação do que se podia entender como parte integrante da estrutura palaciana.

Fig. 17 – O Paço da Vila de Sintra.

Relativamente ao Castelo, o monumento de mais difícil interpretação, pensamos que existe também uma tentativa de aproximação à realidade da parte do artista, mas que por constrangimentos ditados pela exiguidade do espaço disponível, optou por representar apenas a cintura de muralhas que nessa altura devia estar mais bem conservada, ou seja, aquela que também nós conhecemos como melhor conservada nos séculos seguintes, aquela onde se insere as designadas torres do castelo. Numa primeira abordagem pode-se ficar com a ideia de que a representação não tem qualquer aderência à realidade, aliás já retratada pelo Duarte D’ Armas, mas pode ser apenas uma ilusão e a esse tema iremos consagrar um próximo artigo.

Fig. 18 – Castelo dos Mouros.

Por fim, e para terminar nas alturas da Nossa Senhora da Pena, resta apresentar o Convento dos Frades Jerónimos que havia tomado esta configuração no tempo de D. Manuel I, um autêntico ninho de águias como já alguém havia afirmado. Para aquilatarem a respeito da fidelidade do desenho, existe disponível as gravuras de Duarte D’Armas, que o apresenta com algum detalhe e a gravura de D. Fernando II, que podem ver no “Roteiro Lírico de Sintra” e mostra-nos o monumento da mesma perspectiva. Outras gravuras existem mas focam-se na entrada principal.

Fig. 19 – Convento de Nossa Senhora da Pena.


Após a conclusão deste artigo – feito em duas semanas, pelo que pedimos desculpa por algum erro grave em que tenhamos incorrido ou alguma literatura que não tenhamos verificado ou conhecido sobre o assunto – folheámos todas as páginas do dito “Livro de Horas de D. Manuel” que é atribuído também a António de Holanda – teve intervenção de mais dois ou três artistas – para verificar se mais alguma informação haveria a recolher. De facto, verifica-se no fólio 25, mais uma representação, de Lisboa – imagem já conhecida e divulgada nos estudos olissiponenses – e de toda a costa que vai de Lisboa até à serra de Sintra-Cascais. Representação esta, com nítidas semelhanças com a da “Genealogia dos Reis”, o que reforça a autoria de ambas atribuída a António de Holanda.

Fig. 20 – "Livro de Horas de D. Manuel", fl. 25.

Esta obra não se encontra digitalizada, não sendo de todo possível ver a imagem com a nitidez suficiente para perceber se existe algum monumento presente. Estamos em crer que não, a não ser de facto a serra ou mesmo o cabo da Roca que parece misturar-se com a representação da serra que está nas costas de São João Evangelista. Não deixa de ser curioso que a serra por detrás Virgem, que tem nos seus braços o menino, tem semelhanças com a zona da serra de Sintra onde se deu a aparição da Nossa Senhora da Peninha. Não sabemos se houve alguma intenção mas não deixa de ser curioso, pelo que terminamos com este reparo. 

SINTRA INÉDITA

Uma nova imagem de Sintra com 500 anos!
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MOUNTAIN OF THE MOON | Estreia

O Segredo da Serra da Lua
Apresentação: Rui Gonçalves | Sintra Subterrânea
20.11.2013

“Segundo a opinião de autores antigos dignos de fé, já em eras remotíssimas se chamava Promontório da Lua ou Cynthia, sob cujo nome os primeiros habitantes da Lusitânia adoravam aquele planeta. Segundo eles, de Cynthia se deriva a palavra Cintra. De acordo com a maior parte dos autores, a fundação desta vila principiou por um templo edificado pelos Gregos, Galos-Celtas e Túrdulos, 308 anos antes de Jesus Cristo, e dedicado à Lua. Quiserem dedicar este templo ao imperador Octaviano Augusto II, mas, como este não consentiu em semelhante apoteose, o dedicaram então à Lua. Isto se acha confirmado por vários cippos e outras pedras com inscrições que por aqui têm aparecido em várias épocas.”

São com estas palavras que Pinho Leal, autor da obra “Portugal Antigo e Moderno”, no ano de 1874, descreve Sintra, enfatizando a sua associação à Lua e a cultos antigos dedicados a esse mesmo astro. De facto, e escusando-nos a qualquer reparo critico às suas palavras, Sintra, pela sua posição geográfica de Finisterra, situada nos confins do velho continente europeu, sempre se viu associada a ideias de ordem mítica e sagrada, situação essa que não se perdeu durante o fenómeno da cristianização do espaço e parece ter-se acentuado posteriormente pelos escritores românticos ao designarem-na como paraíso terrestre. Não deixa também de ser curioso que um dos seus monumentos mais emblemáticos, - o Castelo dos Mouros - de certa forma mantenha viva a tradição lunar, não fosse o crescente símbolo da mouraria.

Não desviando o assunto da sua íntima relação com a Lua, é sobre isso que o filme se debruça, há que dizer que esta conotação, na antiguidade pressuponha este astro como divindade e a consideração da existência de um culto, possivelmente em paralelo com adoração do Sol, não fosse Selene – associada à Lua – irmã de Hélio, personificação do Sol na mitologia grega. Aliás, diz-nos André de Resende que “nas fraldas do monte, no próprio cimo da falésia, que se precipita no Oceano, existiu antigamente um templo consagrado ao Sol e à Lua. Dele só restam escombros nas areias litorâneas e alguns cipos indicadores de antiga superstição”

Com efeito, e diversas podem ser as superstições, vem esta curta-metragem, original e ficcional, de João Brandão Rodrigues, questionar a mais longínqua superstição associada a Sintra, parafraseando o geógrafo Cláudio Ptolomeu, a de “Monte da Lua, Promontório”.

Qual a verdadeira origem da adoração à Lua em Sintra? Poderá ter passado despercebido aos olhos de todos o que de facto era venerado nos primórdios do tempo? O filme, em forma de metáfora, dá-nos as respostas a essas questões, servindo-se dos cenários edílicos e dos mistérios que a serra ainda hoje para si reserva e em si encerra.



MOUNTAIN OF THE MOON | Ante-Estreia de curta.

O Segredo da Serra.
Apresentação: Rui Gonçalves | Sintra Subterrânea
Projecto: João Brandão Rodrigues (vídeo e textos)
01.11.2013

A Serra de Sintra esconde um segredo! Terra de encanto e beleza, considerada sagrada desde a mais remota antiguidade, desde sempre tem apelado à imaginação de todos aqueles que a conheceram, fundindo o natural com o fantástico. Mitos e lendas fazem parte desse imaginário.

Criaturas mitológicas são avistadas ao longo da sua costa, éguas são fecundadas ao sabor do vento, tesouros jazem enterrados por debaixo das ameias do Castelo dos Mouros, insólitos subterrâneos percorrem a serra de uma ponta à outra, templos são devotados a misteriosos deuses antigos e enigmáticos cultos lunares se perdem no tempo. Tudo, mas tudo em Sintra é “mistério, feitiçaria, sortilégio ou magia”, e por detrás disto tudo, um mistério maior, um segredo com milhares de anos.

Temos o prazer de apresentar no nosso blog a ante-estreia da curta-metragem de João Brandão Rodrigues, a quem mostrámos os mais secretos locais de Sintra para que este seu projecto se pudesse concretizar tendo por cenário de fundo a realidade Sintrense, assim como, a quem revelámos os mais altos mistérios da serra para que o filme resultasse num argumento incrível e inovador, distante de todos aqueles que já conhecemos, ou seja, uma revelação para todos aqueles que tiverem olhos de ver. Fruto de quase um ano de trabalho e pesquisa, no maior dos segredos, já após o filme concluído, viemos a descobrir que muitos dos locais que irão ver já não se encontram acessíveis, e por razões que nos ultrapassam. 


DA FONTE E DOS BANHOS DE SANTA EUFÉMIA EM SINTRA - IV

Capítulo IV - Em torno da sua antiguidade e erros de interpretação.
Autoria: Degraconis - Pesquisa: Sintra Subterrânea | (Ver capítulos anteriores)
29.10.2013

Neste capítulo vamos tentar retroceder até ao momento em que surge a primeira referência documental à fonte e aos banhos de Santa Eufémia. A pesquisa desenvolvida para indagar quanto à sua antiguidade, inevitavelmente, levou-nos a conhecer o texto transcrito abaixo, o qual afirma existir na carta do cruzado Osberno, do século XII, uma alusão explícita às suas águas medicinais. Porventura seria assim a mais antiga descrição da fonte de Santa Eufémia, deixando também perpassar a ideia de que existe uma referência ao nome da santa na carta, ou pelo menos, é a ideia apresentada por todos aqueles que apenas tiveram acesso a este trecho disseminado vezes sem conta por diversos blogues e sites.

Fig. 1 – Descrição do Igespar sobre o sítio de Santa Eufêmia (excerto)

Estranhámos o facto, por razões que não interessa agora referir, pelo que decidimos aprofundar o assunto. Resulta este artigo, precisamente da pesquisa que viemos a desenvolver, a qual, e para surpresa nossa, traz a público, matéria digna de ser analisada a requerer nova leitura interpretativa.

Localizámos a fonte bibliográfica num texto publicado pelo IGESPAR – acima publicado - e que a ser verdade levanta duas questões sobre as quais também andávamos a gravitar: a antiguidade da dita fonte e a origem do culto a Santa Eufémia na serra de Sintra, visto até ao momento não termos encontrado referências à sua veneração neste local nos mais antigos martirológios e breviários portugueses. Nem mesmo o “Agiológio Lusitano”, de Jorge Cardoso de 1657, que consagra algumas páginas à hagiografia de Santa Eufémia, e no qual parece estar baseado o texto do painel de azulejos da ermida que relata a lenda da Santa, lhe consagra qualquer referência em Sintra.
Fig. 2 - Martirológios e Breviários portugueses

Todavia, e já posteriormente, após vasculhar todo o “Arquivo Histórico de Sintra” de Silva Marques, esbarrámos com um documento do ano de 1253 que já fazia menção a Santa Eufémia. Trata-se de um documento que traça a divisão paroquial do território, designado de “Treslado do limitte, e demarcação das Igrejas da Villa de Cintra”, uma cópia do séc. XVIII, visto não se conhecer o paradeiro do original, sem contudo existir dúvidas da autenticidade do seu teor.

Fig. 3 - Excerto “Treslado do limitte, e demarcação das Igrejas da Villa de Cintra”
 e fotografia de J.M da Silva Magalhães

Retomando o assunto da carta, procurámos então o original de forma a verificar a dita alusão documental à fonte de Santa Eufémia, tal como indicado no texto divulgado pelo IGESPAR e DGEMN. Inesperadamente, e para nossa surpresa não se verifica qualquer referência ao local em concreto ou à santa. O texto publicado pelo IGESPAR (e também pela Direcção Geral dos Monumentos Nacionais) é uma leitura anacrónica, ou seja, identifica o local como sendo o de Santa Eufémia, sem porém tal constar no texto explicitamente. Viemos posteriormente a conhecer o relatório que deve ter servido de base à elaboração do texto das duas instituições citadas, curiosamente produzido precisamente em Sintra, e a isso voltaremos mais adiante.
 
Fig. 4 – Carta do Cruzado (excerto)

Esta carta está traduzida por vários autores, e obviamente, como não poderia deixar de ser, nenhum deles revela o nome do local da fonte como sendo o de Santa Eufémia, tão só o traduzem textualmente para português corrente.

Fig. 5 – Obras que versam sobre a Carta do Cruzado

Fig. 6 – Tradução do excerto da carta onde refere Sintra (existe, todavia outras referências a Sintra)

Esta pesquisa levantava então agora uma outra questão, abrindo-se assim uma nova possibilidade de investigação, e quiçá, a descoberta de uma descrição de uma outra fonte famosa que não a da santa: Estaria então o Cruzado efectivamente a referir-se ao local da Fonte e Banhos de Santa Eufémia que hoje conhecemos?

Analisado o texto com as maiores reservas, e como bem reparou “O Caminheiro de Sintra”, nada no texto permitia semelhante conclusão. Tudo no texto no leva a concluir por outra localização e eventualmente outra “fons” (fonte ou nascente) que pode ainda hoje existir, ou não.

Diz-nos o texto que próximo de Lisboa fica o Castelo de Sintra (castrum Suchtrium), local onde (in quo) existe uma fonte de água puríssima (fons este purissimus), referindo-se, portanto, ao local do Castelo em concreto. Não excluímos o caso de estar a referir-se às imediações do Castelo, mas o texto não nos deixa concluir indubitavelmente que assim seja, pelo que será uma interpretação abusiva pensar ser uma referência concreta à fonte de Santa Eufémia, que apesar de próxima não se localiza no Castelo nem no monte onde este assenta.

Não é de excluir a hipótese do cruzado estar a referir-se ao designado Palácio Nacional na Vila Velha, visto Al-Mumin Al-Himyari no séc. XII, segundo uma descrição do geógrafo Al-Bakri (séc. XI) e Al-Idrisi (Sé. XII), ter descrito Sintra como tendo dois castelos ou fortalezas de extrema solidez, abrindo assim a possibilidade da fonte ser a da Sabuga, mas não estamos em crer que seja uma hipótese válida.
  

Fig. 7 – Duas perspectivas de Sintra no inicio do séc. XVI desenhadas por Duarte D’Armas.

A reforçar esta ideia, de um equívoco na interpretação do texto e não estar o Cruzado a referir-se a qualquer fonte fora do castelo, diz-nos ainda o texto que os moradores - do castelo (?) - ouvindo alguém tossir, depreendem não ser natural do local (indígenas deprehendant). Adianta-nos também, que além da fonte ou nascente, ali existiam limões (limoeiros, depreende-se), referindo-se certamente ao Castelo e não a Santa Eufémia, até porque, parece que a zona seria erma.

Portanto, pensamos que estamos perante a primeira descrição do local da actual cisterna do castelo (na altura poderia não o ser ainda e a isso ainda voltaremos), e não da Fonte de Santa Eufémia, independentemente da antiguidade que se possa reconhecer a esse local. Lembramos que debaixo da capela de Santa Eufémia foram descobertos recentemente, dois fragmentados fustes marmóreos inéditos, ambos de 42 centímetros de diâmetro, possivelmente do período imperial, que parecem atestar a presença de algum templo ou habitação antiga, já para não referir a estação pré-crista que é conhecida como o povoado de Santa Eufémia.

 Fig. 8 – Gravura da Cisterna datada de 1795 (colorida)

Antes de prosseguir queremos expressar as nossas dúvidas quanto à antiguidade desses fustes, não desconsiderando à opinião de alguém mais autorizado do que nós que se referiu às mesmas com pertencendo eventualmente a um templo romano. O facto de existir junto a esses dois fustes uma pedra tumular com uma vasta inscrição em português antigo, leva-nos a pensar que possa ter sido descoberta em simultâneo com esses dois fustes, e poderiam então pertencer à antiga ermida de Santa Eufémia. Curiosamente, não encontramos qualquer referência documental a essa tampa tumular, tendo nós próprios tomado a iniciativa, com a preciosa ajuda de Gustavo Monteiro de Almeida, de a decifrar. Só não publicamos agora o texto já transcrito pelo mesmo, em virtude de novas fotos enviadas à última da hora a Gustavo terem levantado dúvidas quanto ao que se julgava ser a data de 1508. Inesperadamente, informa-nos que afinal pode não se tratar de uma data mas sim de mais uma palavra. Após uma nova análise das fotos, concordámos inteiramente com a tese apresentada. Iremos muito em breve ao local para que se faça um trabalho cuidado e rigoroso.

Fig. 9 – Fustes e tampa tumular que se encontram na sacristia da igreja de Santa Eufémia

Outra das razões que nos parece suficiente forte para aquilatar por uma fonte diversa é precisamente as propriedades medicinais que estão associadas a esta fonte de água puríssima descrita pelo cruzado. Com efeito as propriedades apontadas no texto são a cura da tísica e da tosse, as quais sabemos não estarem associadas às águas de Santa Eufémia, conforme pode-se verificar no painel de azulejos onde indica serem as da Santa, próprias para a enfermidade da sarna, fígado e males do corpo. Poder-se-ia ao longo dos séculos terem atribuído tão díspares funções medicinais às mesmas águas? Não é usual tal acontecer. A expressão “males do corpo”, apesar de generalista, dentro do contexto de Santa Eufémia, parece querer indicar problemas de pele e não qualquer outro tipo de male de que possa o corpo padecer. Não estavam as águas de Santa Eufémia canalizadas para a Gafaria de São Pedro para tratamento da lepra, local onde surgiu uma capela cujo orago é precisamente São Lázaro, santo associado às enfermidades da pele? Não conseguimos no entanto garantir a veracidade desta ideia de captação das águas para a Gafaria por falta de evidências arqueológicas, tão só a encontramos na “boca do povo”.

Fig. 10 - Painel de azulejos de Santa Eufémia onde surge a lenda
 relatada e os males que as suas águas milagrosas curam.

O termo “fons” pode apresentar várias significações, das quais as mais comuns são nascente ou fonte, não se excluindo no entanto a possibilidade de significar também poço, mas é uma situação menos frequente. Nada no texto nos permite concluir se efectivamente era uma “fons” coberta, mas pela comparação dos textos onde tal palavra surge e também pela iconografia onde se insere como legenda, pensamos que de facto, devia existir algum enquadramento arquitectónico. Verificamos isso nas iluminuras e pinturas bíblicas e nos desenhos do “Livro das Fortalezas” de Duarte D' Armas do séc. XVI, por exemplo.

 Fig. 11 – Fons (as imagens superiores), poço e chafariz, insertas no Livro das Fortalezas do Séc. XVI.

O facto do cruzado a ter valorizado parece ser indício suficiente da sua fama e provavelmente estaria de facto dotada de alguma estrutura a enquadrá-la ou a cobri-la, tal como acontecia na Fonte da Sabuga, onde parece ter existido até ao século XIX umas cantarias quatrocentistas. Tal como é lícito pensar que a Fonte da Sabuga nessa altura não fosse mais do que uma simples bica na pedra jorradiça dotada de um pequeno tanque e com os elementos referidos a adorná-la, também podemos pensar o mesmo para a fonte citada pelo cruzado. Contudo há que salientar que três séculos mediam entre a descrição do cruzado e as referências do parágrafo anterior, e do livro de Duarte de Armas, pelo que pode ser especulativo imaginar-se de como seria de facto a sua configuração com base nisso.


 Fig. 12 - Cantarias da Sabuga e Fonte da Cabreira, 
Terrugem, fins do séc. XV, princípios do séc. XVI

É muito improvável, que já existisse no séc. XII a cisterna como a conhecemos hoje, não só devido ao aparelho construtivo utilizado – parte parece resultar de uma reutilização -, mas porque a referência ou termo usado – fons - da parte do cruzado, eventualmente, seria diferente para uma estrutura dessa dimensão. Todavia podemos considerar esta revelação (se assim for), um subsídio para dar em parte, resposta a uma pertinente questão que têm envolvido este local ao longo dos séculos: é a cisterna do castelo dos mouros abastecida por uma nascente ou trata-se apenas de um reservatório de águas pluviais, caso efectivamente se trate de uma alusão à “fons” do castelo. A este tema em concreto dedicaremos um artigo muito em breve.
Fig. 13 – Cisterna, foto exposta no local.

Para que não se criassem lacunas graves no artigo ou omissões imperdoáveis, não deixámos de tentar saber o que os arqueólogos do concelho, nomeadamente Cardim Ribeiro, arqueólogo e Director do Museu Arqueológico de Odrinhas, poderiam já ter escrito sobre o assunto. Descobrimos que num meio mais restrito, o da arqueologia e académico, a alusão do Cruzado chega a ser identificada com a sobejamente conhecida Fonte da Sabuga, o que a nosso ver é mais credível do que a identificação com Santa Eufémia, ideia que, no entanto, Cardim Ribeiro rejeita, informando que poderia ser qualquer outra existente na altura, possivelmente hoje impossível de localizar. Não temos bases sólidas para sustentar a nossa identificação com a cisterna do castelo, nem força para crer que a fonte do cruzado tenha sobrevivido às vicissitudes do tempo, mas queremos acreditar ser uma das principais fontes de Sintra ainda hoje existentes, seja a da Sabuga, de Santa Eufémia ou do castelo, local para o qual mais nos inclinamos.

E porque a nossa pesquisa inicial pretendia descobrir ou fixar a data da primeira referência documental à fonte ou ao culto a Santa Eufémia em Sintra, não podemos terminar sem acrescentar mais umas palavras ao artigo, visto ter resvalado, e bem, para outro tema.

Conseguimos fixar a primeira referência a Santa Eufémia em Sintra no séc. XIII – e não no séc. XII como se pensava erradamente – através da menção existente na demarcação paroquial do território já descrita e, se bem com as maiores reservas, fixar os banhos no ano de 1453, através da notícia de abade Castro e Sousa referida no artigo “Antigualha da Cercania de Cintra” publicado no periódico “O Panorama” de 1842, onde nos informa que o arcebispo D. Luiz Coutinho procurou aliviar o seu mal de lepra nos banhos de Sintra. De facto os banhos de Santa Eufémia são indicados para esse tipo de problema mas pode existir aqui problemas de interpretação idêntico ao que se deu com a carta do cruzado, e neste caso em concreto, infelizmente, não temos acesso ao documento original ou à citação onde possa o abade ter obtido essa informação. Nem nós nem Anselmo Braamcamp, que critica-o por esse tipo de falha. De salientar ou recordar que em São Pedro – localizado ao que parece no Cabeço do Ramalhão – existia uma Gafaria.
  
Fig. 14 – Notícia dos banhos

Apesar de não termos tido sucesso nesta pesquisa, ao não conseguirmos perceber ou provar uma antiguidade pré-nacional da fonte, dos banhos – os quais podem ter surgido mais tarde – e da instalação do culto à santa neste local, não significa que já não tivesse longos séculos – ao contrário do que o texto do Igespar afirma ao fixar a edificação da capela no séc. XIII -, até porque o fenómeno da cristianização das zonas rurais que caracterizou a designada antiguidade cristã, manteve-se constante, através do moçarabismo, durante a ocupação islâmica, permitindo a reconquista dar continuidade a essas mesmas tradições que já vinham de contexto romano, suévico e visigótico. Aliás, e como verificámos na obra “Paróquias Suevas e Dioceses Visigóticas” do polémico Almeida Fernandes, P. David ao justificar a permanência dos quadros paroquiais anteriores à islamização, argumenta pela toponímia e pela permanência dos santos patronos invocando não terem surgido novos titulares para esses lugares. P. David na sua obra “Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe siècle” chega mesmo a dizer-nos que “nos séc. X e XI as igrejas velhas ou reconstruidas têm por titulares aqueles que eram tradicionalmente venerados sob os reis visiogóticos”.

Portanto, é verossímil que o culto a Santa Eufémia em Sintra seja muito anterior à nossa nacionalidade, e a reforçar existe o facto de a mesma já ter data de celebração no Sacramentário Moçarabe Ibérico, conforme nos informa Justino Maciel que por sua vez recolheu a informação na obra “"El culto de los santos en la España romana y visigoda" de Garcia Rodriguez.

Santa Eufémia, a original, porque muitas vieram a surgir e com biografias que diferem umas das outras, foi uma mártir de Calcedónia que tinha oito irmãs gémeas, tendo sido martirizada no séc. IV. Outros mártires da Antiguidade na zona de Sintra, e que devem ter passado incólumes pela islamização do território, são São Saturnino, São Romão e São Mamede entre outros.

Em jeito de súmula, há que dizer que independentemente de uma efectiva localização da fonte descrita pelo cruzado, fica provado por meio deste artigo, que nada mais faz do que alertar para a leitura do documento original, de que doravante qualquer identificação da dita fonte com a de Santa Eufémia é abusiva, podendo simplesmente estar a escamotear a descrição de uma outra, e que a nossa ver, com as devidas reservas, indicámos como podendo ser aquela sobre a qual se construiu a cisterna do Castelo do Mouros. Não teria no entanto, que estar sob a cisterna, mas nas suas imediações, até porque a cisterna por definição é um reservatório de águas captadas, quer directamente no próprio lençol freático, quer numa nascente ou mais que a alimente.

Queremos rematar este artigo sobreavisando de que não somos da área da história ou arqueologia, tão só amantes da história de Sintra e que podemos ter falhado na recolha de informação existente e ou eventualmente em algumas das nossas ilações, garantido todavia que tentámos ser o mais factuais na exposição do assunto.

Nota de rodapé:
1. Estamos em crer que a identificação da fonte do cruzado com a fonte de Santa Eufémia se deve ao facto do parágrafo da carta, imediatamente anterior ao parágrafo que refere a fonte de águas puríssimas de Sintra, ser relativo aos banhos quentes de Lisboa. O encadeamento pode ter sido sugestivo para que o autor do relatório tivesse associado uma coisa à outra, até porque Santa Eufémia está conectada com os banhos, mas diga-se, banhos frios, ao contrário dos de Lisboa que estavam a ser relatados pelo cruzado, sem sabermos no entanto quando terá surgido efectivamente a prática dos banhos em Santa Eufémia.

Fig. 15 – Excerto da carta onde se verifica que o cruzado no parágrafo
anterior ao de Sintra referia-se aos banhos quentes da cidade de Lisboa.


2. No texto do IGESPAR também se percebe que existe um equívoco quanto às propriedades medicinais ou milagrosas atribuídas às águas de Santa Eufémia, derivado precisamente de uma leitura pouco cuidada da carta, levando a um círculo vicioso interpretativo, ou seja, ao pensarem tratar-se das águas de Santa Eufémia, automaticamente atribuíram-lhe as prescrições a que o cruzado alude – tísica e tosse -quando existe um documento do séc. XVIII (o painel de azulejos) que determina serem outras as maleitas curáveis com as águas da Santa. Curiosamente, este erro não se repete nos diversos blogues e sites que copiaram o texto do IGESPAR. Pode o povo não saber muito de história do século XII mas conhecem muito bem, por tradição e pelo painel de azulejos, a que doenças andam essas águas associadas.


Capítulos anteriores
CAP. I - DAS DESCRIÇÕES ANTIGAS QUANTO À LOCALIZAÇÃO
CAP. II - A FONTE NA CARTOGRAFIA 
CAPÍTULO III - DAS INSCRIÇÕES LAPIDARES DA FONTE DE SANTA EUFÉMIA

Próximos capítulos
 CAP. V - DAS ÁGUAS MIRACULOSAS E DA SUA MINA


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